I. - A Valsinha - Vinícius e Chico Buarque
Chico Buarque e Vinícius de Moraes unidos em uma parceria para fazer uma música é uma combinação difícil de imaginar pois os dois estão entre os maiores letristas da Música Popular Brasileira. Entretanto, em torno de 1970 os dois se uniram para criar uma linda música chamada "Valsinha", que é um "chute na porta" do tédio, da pasmaceira que a vida pode nos aprisionar. Inicialmente Vinicius criou a melodia e entregou-a a Chico Buarque para ele fazer a letra. O resultado é lindo.
Renoir, danse à la ville, 1883, Museu de Orsay |
Interessante também é conhecer uma troca de cartas entre Vinícius e Chico sobre a necessidade ou não de fazer alguns ajustes na letra. Vinícius até sugere a Chico mudar o nome para Valsa Hippie, o que Chico não concorda e fica o nome original. Veja mais abaixo.
II. Resuminho ilustrativo para quem não conheceu Vinícius de Moraes
Vinícius foi poeta, compositor e diplomata nascido no Rio de Janeiro , no bairro do Jardim Botânico. Logo cedo com amigos do Santo Inácio, forma um pequeno conjunto musical para tocar em festinhas. Com apenas 17 anos e seguindo o caminho natural de muitos jovens que aspiravam as letras, entra na Faculdade de Direito da Rua do Catete, no Rio de Janeiro.
Em 1933 Estimulado pelo escritor Otávio de Faria consegue publicar pela Schmidt Editora (de propriedade do poeta Augusto Frederico Schmidt) seu primeiro livro de poemas: O caminho para a distância.
Com a Segunda Guerra Mundial, retorna ao Brasil por Portugal. Acompanhado de Tati, passa um período em Lisboa, em companhia de Oswald de Andrade, amigo de sua mulher e a quem conhece naquela ocasião.
Em Estoril, 1939, aguardando a partida do navio de volta ao Brasil, escreve o “Soneto de fidelidade”.
Após ser reprovado na primeira tentativa de ingressar na carreira diplomática, passa a estudar com o amigo Lauro Escorel para uma nova tentativa que, dessa vez, será bem-sucedida.
Ao conhecer Tom Jobim, em 1953, iniciou apaixonado envolvimento com a música brasileira, na qual se tornou um de seus mais notáveis letristas.
Em 1959, seguem os lançamentos discográficos com composições de Vinicius e Tom. João Gilberto, que batiza seu próprio disco de estreia de Chega de Saudade, apresenta uma interpretação inovadora e transforma a canção da dupla em uma das mais importantes da história brasileira.
Após esse disco, que ainda contava com “Brigas, nunca mais”, os três nomes serão sempre lembrados como os fundadores da Bossa Nova. A cantora Lenita Bruno contribui para a fama ao gravar o LP Por toda minha vida, apenas com canções da dupla.
Vinicius faria grandes parcerias na MPB as mais famosas e duradouras com Tom Jobim, Carlos Lyra, Toquinho, Baden Powel, Edu Lobo.
Observação: Depois prepararemos algumas publicações específicas sobre Vinícius de Moraes
Observação: Depois prepararemos algumas publicações específicas sobre Vinícius de Moraes
III. Resuminho ilustrativo para quem não conhece Chico Buarque
Compositor, escritor e dramaturgo, é um dos nomes mais notáveis da música popular brasileira. Começou a compor na década de 1960, e em 1966 ficou conhecido em todo o Brasil depois que sua canção, A banda, dividiu com Disparada, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, o primeiro lugar no II Festival de Música Popular Brasileira. A partir daí, não parou de compor sambas hoje clássicos da MPB, além de se tornar escritor de reconhecido talento.
Observação: Depois prepararemos algumas publicações específicas sobre Chico Buarque.
IV. - A Música
video ilustrado postado no youtube por Blue Buterfly
V. - A correspondencia entre Chico Buarque e Vinicius de Moraes
a) Carta de Vinicius para Chico Buarque
Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971
Chiquérrimo!
Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três ideias que tive. Mandei-a em carta a você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio morava em Buri 11, e lá foi a carta para Buri 11. Mas como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se você concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de Valsa hippie, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui no princípio estranhou um pouco, mas depois se amarrou à ideia. Escreva logo, dizendo o que você achou.
Valsa hippie
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um modo mais quente do que comumente
[costumava olhar
E não falou mal da poesia como era mania sua de falar
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse:
[Vamos nos amar…
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto
[esperar
Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga
[costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a
[bailar…
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não
[se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.
Achados. Organização de Caique Botkay. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 39.
b) Resposta de Chico Buarque á Vinícius de Moraes
Rio [de Janeiro], 2 de fevereiro [de 1971]
Caro poeta,
Recebi as suas duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
Valsa hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí. Valsa hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippy. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou “xingou” mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar. Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da trepada final. “Pra seu grande espanto”, você tem razão, é melhor que “para seu espanto”. Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:
Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. É gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao “ousar” que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ô poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisava estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista. É por isso que estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.
Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao “o mundo” em vez de “a gente”. Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do ultimo verso onde você diz “e cheios de ternura e graça” em vez de “e foram-se cheios de graça”. Agora estou pensando em retomar uma ideia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer “Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar”. Só tem o probleminha da junção “em-estado”, o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você mesmo disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado “começaram a se abraçar” sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor mo permitisse, porque deu bolo com o Apesar de você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um beijo no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.
Valsinha
Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre
[chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre
[costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre
[falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto
[convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria
[ousar
Com seu vestido decotado, cheirando a guardado de tanto
[esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo
[não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e
[começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda
[despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não
[se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz
Achados. Organização de Caique Botkay. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, pp. 40-41.
V. - Referências
Correspondencia entre Vinicius e Chico: https://www.correioims.com.br/carta/valsinha-e-nao-valsa-hippie-2/
Perfil do Chico: https://correioims.com.br/perfil/chico-buarque-de-hollanda/
site onde li inicialmente a história da mpusica: https://musicabrasilis.org.br/temas/valsinha-do-chico-e-do-vinicius
Musica Youtube - https://youtu.be/MPY9_-M2HX8